sábado, 3 de outubro de 2009

despedida...





no cais da culatra, ainda não eram oito horas da manhã, a despedida de ti trouxe-me a amarga sensação de que o tempo seria mais do que o normal...

o sol ainda ia baixo e os tons amarelos dão uma côr dramática ao que deveria ser apenas um “até já”. o barco de passageiros branco e azul com ar de desenho animado, chega na espuma branca, sobre as águas escuras da ria pela manhã.

as pessoas fazem uma fila desalinhada, sem pressa, sem regra. entram entre sorrisos e olhares ainda de sono.
um pai mostra um cão da terra nova ao filho e explica que é utilizado nas praias para busca e salvamento. um casal de jovens de outrora, acima dos 60 e muitos, sorri e fala-me. vozes ao longe. tão longe. mas menos longe do que te sinto nesta despedida que deveria ser apenas mais uma.

a tua pele morena, e olhos castanhos de café, linda e elegante como o nascer do dia, afasta-se sem se voltar... estranha sensação... a distância que aumenta entre nós no cais. estranha sensação... o afastar do barco... o aceno do capitão que também se despede de mim.

estranho o mar que ganha dimensão entre nós...

estranho já a luz do dia que nasce indiferente aos sentimentos ambíguos... dia demasiado poderoso para a vontade que tenho. demasiado pesado para a energia que se me esvaiu.

uma história que fica por escrever...

um mundo que fica por descobrir...

um sonho que se afunda.

foi um “namoro” longo o que nos juntou. uma paixão, como qualquer paixão, assolapada e inexplicável.

as tuas formas esguias, chamavam por mim naquele estaleiro, há anos, onde não estavas morto. apenas à espera de alguém que te merecesse... alguém que te trouxesse vida de novo à tua alma adormecida.

um barco que espera calmamente pelo seu momento!

o momento em que um marinheiro completa a sua e do barco, as duas numa só, universalidade de navegadores.

o barco que espera por um navegador capaz de o fazer cumprir o seu desígnio. juntos têm como fado o eterno cruzar de mares, rios, baías e oceanos. na busca ou talvez na vivência de uma liberdade experiênciada a cada milha que passa, ou cada estrela cadente que rasga a noite enquanto estamos fundeados.

longas foram as noites de temporal que juntos degustámos...

cada um de nós oferecendo o que tínhamos. tu, um tecto seco, uns sofás suaves e uma cabine quente que não usava. um doce, por vezes amargo dançar nas ondas do mar revolto. e a mim, apenas me cabia ter tudo preparado para o caso de algo correr mal.

na sala deitado, olhava o mastro que riscava com a sua luz no topo, o céu, apontando algumas estrelas e muitas, muitas nuvens a correr. eu... dormitava na canção do vento. por vezes saltava com o susto de um uivo longinquo que nos abraçava inesperadamente no braço de uma rajada de vento inconformado, que parecia querer-nos tirar do mar, levar-nos para outras paragens. levar-nos de um mar agreste, onde os dois, simplesmente repousávamos, esperando que a bonança chegasse, umas horas... um dia... ou uns dias depois!

à tua mesa vi a aura do sorriso dos amigos.

à tua mesa marquei pontos numa carta e risquei rotas sonhadas nos oceanos.

à tua mesa amei uma mulher e alimentei o espírito no verão e no inverno, outono ou primavera...

horas passei olhando o sulcar da água no alto das tuas proas, como que enfeitiçado pelo saltar das gotas numa fonte mágica, no encantamento de uma vaga que nunca se encontra com o seu fim...

mas hoje... apercebi-me que os nossos caminhos se vão separar... vamos seguir rumos diferente...

não mais vou poder olhar o horizonte a 360º e mergulhar na imensidão do mar, e mais mar, e mar...só e apenas mar!

não mais vou poder escutar a chuva a cair languidamente no convés, como se fosse uma canção de embalar.

acho que hoje realizei que uma parte de mim está a morrer...

acho que hoje realizei que o mais antigo sonho de vida, vai desfalecer.

que outras pessoas se irão sentar à tua mesa... outras pessoas que não eu...

num catamaran com 4 cabines, passei horas, dias, semanas de gentil solidão. “faláva” contigo e com a “nossa” cadela preta como a noite. monólogos de gente do mar, que não sabe para onde vai e muitas vezes, talvez até demais, não sabe realmente de onde vem...

hoje, neste momento, sento-me no chão de um quarto de banho, que fica na escada, na casa de uma boa amiga, num redondo e fofo tapete verde, num edíficio antigo, no centro da europa... o mar fica longe. longe demais para o poder sentir ou escutar. apenas o sonho... e deixo que renasça nos meus olhos que um dia sonharam ser de marinheiro...

adeus Boa Idéia...

lamento não ter conseguido ser o teu navegador...

agradeço do fundo do coração as vivências que me permitiste...